24/12/2010

Atenção. Este post não reflecte o meu estado de espírito. Eu tou fixe.


Porque o ano está a chegar ao fim e, mesmo para os que dizem "ah e tal e coiso, isto de fazer balanços e resoluções só porque é Ano Novo é uma treta" (grupo no qual eu me incluo), é inevitável dar, assim como quem não quer a coisa, um olhar muito de fininho por cima do ombro, para o que passou, e querer assear um bocadinho o caminho para o ano que há-de vir... É inevitável. É como dizer "oxalá não haja nenhum acidente e gente dacapitada no meio da estrada!", mas se passarmos por um carro amolgado, vamos espreitar e tentar ver o sangue, de certeza...
Portantosss... hoje pus-me a fazer aquela limpeza ao meu quarto. Aquela em que, finalmente, me desfaço de roupa que não visto, bijuteria que não ponho, papeis que não vou ler, coisinhas bonitas mas absolutamente inúteis e aquela boneca quase tão velha quanto eu, que até era bonita mas que está velha e suja. Fiz isto tudo. Mandei tudo pro lixo ou pro ecoponto, conforme.
Nisto consistiu a limpeza do entulho supérfluo que carrego às costas e que não queria levar comigo pro novo ano...
Quanto à outra parte, a de olhar pra trás: a coisa estava a correr bem. Ainda não me tinha posto a pensar no assunto, até que ele veio ter comigo sem eu lhe ter encomendado o sermão. Veio sob a forma de uma mensagem de Feliz Natal do meu ex-amigo. Aquele que tanto me deu aqui que escrever... Aquele que, há precisamente um ano, me enviou uma mensagem no dia 24; mensagem essa que escreveu para mim, com um conteúdo pessoal. Este ano já não foi assim. Recebo a mensagem-tipo que ele manda a toda a lista, subtraindo os que merecem mensagem especial, como já foi o meu caso... De notar, ainda, que recebi a mensagem no dia 23, antes que acabem as mensagens grátis. Perante isto, o meu pensamento foi "How the mighty fall...". (É deformação profissional. No trabalho, passo um tempo considerável a falar inglês, então já me acontece virem mais depressa à cabeça as coisas na língua de Shakespeare do que na de Camões... Este é um caso. Traduzido à letra significa "Como os poderosos caem...". Se tiverem uma tradução menos literal e que caiba melhor, façam favor.)

21/12/2010

Abracinhos

Ia começar por dizer que deixei "a minha bolha" em casa, mas tal não seria verdade. Ela vai comigo, sempre. A bolha que se queixa e irrita quando alguém se aproxima de mais e me toca ou respira o mesmo ar que eu. Ela nunca fica em casa. Mas amarrotei-a um bocado, diminui-lhe o diâmetro. Fiquei um bocadinho mais livre e leve, sem aquela pressão omnipresente.
...e abracei! Abracei toda a gente! Alguns mais do que outros; alguns de forma natural, outros de forma inesperada e surpreendente... E fui sempre bem recebida. Ninguém me rejeitou.
Recebi colo e presentes! Recebi a noção da quantidade de pessoas que me vêem, pelas milhentas palavras que recebi; por um simples livro, num pacote bonito, que eu nunca tinha manifestado o desejo de receber mas que alguém entendeu que eu deveria gostar (e gostei, tanto!); por um par de brincos que elogiei de passagem e que me foram oferecidos sem hesitação... Por estes nadas mesquinhos que me confortam e comovem tanto...!
Nesse dia, decidi fazer diferente... só porque sim. Só porque era o meu aniversário... e até nem doeu muito...

15/12/2010

esquisitices

O despertador interrompeu-lhe o sonho a sangue-frio, estridente e irritante como sempre, como todos os dias. O primeiro reflexo foi puxar a manta para cima da cabeça e fingir que não tinha ouvido. Mas isso implicaria ficar por casa... Credo! Levantou-se e dirigiu-se "à casinha" para gelar ao ver a tampa da sanita aberta. Repirou fundo; o dia estava a começar, não vamos amargar logo de manhã... Arrastou-se até à cozinha rogando a todos os deuses, entidades sobrenaturais, vizinhos de cima e carros da rua que ainda ninguém lá em casa estivesse acordado. Preparou o pequeno-almoço em sossego e bebia beatificamente o seu café (Expresso, bem tirado, por Deus! Nada daquela treta de água escura que sai das cafeteiras do tempo da avó!) quando aparece o elemento sénior da família ainda de remelas nos olhos: "Bom dia!", cheio de boa disposição ao antever mais um dia ocioso. Eriçaram-se-lhe todos os pêlos do corpo ante tamanho despropósito e encolheu-se disfarçadamente dentro do pijama coçado a pensar "será que já me viu?". Conseguiu emitir um afectado "hummm" de resposta, que esperou ser suficientemente expressivo para desencorajar réplica. Não haveria de tardar muito a cair ali toda a gente, a esfregar os olhos, de cabelos descompostos, a contarem os sonhos hilariantes que tinham tido. Tinha que fugir. Rapidamente. Vestiu-se. Fez a cama. Ainda estava quente mas melhor assim do que ser outra pessoa a fazê-la, que nunca tinham o cuidado de esticar os lençóis como devia ser e consideravam de bom gosto deixar as almofadas artisticamente tombadas. Que cócegas... Passo seguinte: quarto-de-banho. Oxalá a toalha onde vou limpar a cara esteja seca e limpa e pendurada direita no toalheiro. Oxalá a pasta de dentes não tenha sido apertada pelo meio. Oxalá não haja cabelos alheios na minha escova. Oxalá o tapete esteja alinhado com os riscos da tijoleira. Oxalá todos estes pressupostos se verificassem. Nunca se verificavam.
Saiu, finalmente, de casa! ...não sem antes dar um toque com o pé no tapete da entrada que, invariavelmente, não estava alinhado com a tijoleira. Neste ponto pensava sempre: "a minha casa há-de ter o chão liso. Completamente liso, para não ter a paranóia de alinhar tapetes com tijoleiras... Oh, mas que porra... Se não for pela tijoleira, hei-de alinhá-los pelo rodapé. Mas eu quero enganar quem?".
Paragem do autocarro. Foi um sério teste de resistência tolerar aquele indivíduo com catarro crónico que não cessava de brindar os presentes com sons emitidos directamente do mais fundo da sua garganta. Não encontrou lugar sentado no bus, pelo que se encostou a um canto, mas isso não impediu que passasse toda a viagem a receber toques e encontrões pelos lados. Mais do que com os toques em si, arreliava-se com o facto de nenhum dos agressores mostrar minimamente incomodado com o contacto. "Parecemos botijas de gás, apinhadas numa caixa aberta qualquer", pensou com desconsolo.
Trabalho. Hora de almoço. Trabalho, parte II.
Regressar a casa... Novamente o magote de pessoas enlatadas no mesmo bus, com a agravante de que a frescura matinal já se foi. Os homens já vêm de colarinhos desabotoados, a cheirar levemente a suor e as senhoras com a maquilhagem borrada. O colega, que vem no mesmo autocarro, sussurra-lhe uma piadita desinteressante qualquer ao ouvido e o calor da respiração na pele do pescoço faz-lhe assomar à cabeça uma resolução: "Tenho que arranjar carro... ou uma doença contagiosa qualquer que desencorage este tipo de atrevimentos e invasões de espaços vitais."
Chega a casa para a avalanche de perguntas sobre a jornada, como se fosse de esperar qualquer novidade. "Foi um dia normal...", remata com sorna. A tia andou em limpezas: lá estão novamente as molduras de fotos, jarros com flores, livros e todos os tarecos decorativos artisticamente colocados de viés, em cima dos móveis e estantes. À sua passagem, vai endireitando tudo, de forma a ficar tudo em linhas paralelas ou perpendiculares à borda do móvel.
Conversas. Barulho. Risos. Oh, sorte... Fecha-se no quarto simulando alguma tarefa importantíssima e inadiável, fazendo a sua aparição apenas para jantar. E recomeça tudo.
"Não, pela enésima vez, não quero que me sirvam a salada. Vão encher-me o acompanhamento de pingos de azeite e vinagre. Córror!". A avó, na falta de insulto mais rebuscado, remata com um "ai, estes jovens agora são uns enjoados" que vai alternando com um "é a fartura que faz o galo galego". Para sobremesa, procura uma peça de fruta. Não uma qualquer. Deve ser "A" fruta. Imaculada. Intocada. Sem manchas ou pisaduras ou picadelas de bichos ou pássaros. Madura, sem estar mole. E fresca do frigorífico, sempre. Nova onda de comentários à esquisitice.
Depois insistem em "ajudar", dizem eles, a preparar a banca para lavar a louça. Amontoam os pratos sem terem o cuidado de raspar os graõs de arroz todos (todos, mesmo) para o lixo e sem despejarem as últimas gotas de vinho dos copos. Depois de acabarem de ajudar (?!) sentam-se e, inspirando fundo e expirando lentamente, cabe-lhe a si, passar tudo por água como deve ser, antes de encher a banca, a menos que se queira habilitar a ter grãos de arroz flutuantes na água da lavagem, turva pelo vinho tinto.
Enquanto está nesta faina, vai ouvindo as conversações em português reles que se vão passando na sala. Uma a sugerir preparar umas "hamburgas" para o almoço de amanhã; outra a contar da vizinha que vai fazer uma "biópse"; alguém queixar-se da juventude, que está cada vez mais "remusgona"...
Acaba de arrumar a cozinha a correr e vai agarrar num livro. Fica na sala (para não receber o rótulo de anti-social) com esta desculpa formidável para não responder a comentários ou participar em conversas... Isto, esperando que já tenham desistido dos comentários de "tanto lês! Vê se descansas essa vista! Parece que comes livros!"
Espera que todos vão para a cama. Aí, sim... Silêncio. Paz. Estica-se no sofá...que ainda está quente de toda aquela gente que lá estava plantada há horas. Vai para o quarto. Fecha os olhos. Sente o frio na pele enquanto tira a roupa para vestir o pijama. Deita-se, finalmente. Agarra com força a almofada e, no limiar do sono, toma uma decisão: "Amanhã, compro uma arma..."

14/12/2010

Verbo TRAPACEAR

No Presente do Indicativo
Eu trapaceio
Tu trapaceias
(...)
"Eles" não me trapaceiam mais!
O limpa pára-brisas do lado direito do meu pequenote avariou. Levei-o à oficina do costume, onde comprei o carro, e disseram-me que precisava de uma peça assim-assim, da marca, que custava cerca de 120€. Só a peça.
A conselho de quem sabe mais do que eu, fui à oficina que existe junto ao El-Eclerc de Lamego, onde um senhor (abençoado seja ele por toda a eternidade) me disse "Menina, isto foi um parafuso que se soltou. Vou ter que desmontar esta parte toda, vai demorar um tempo..."
Esperei cerca de 40 minutos; no final o limpa pára-brisas funcionava e eu paguei 7,50€...

06/12/2010

Ira

A ira é um sentimento admirável.
É menos requintada do que o ódio e menos impulsiva que o ciúme, é certo; mas destes três, é a minha favorita. O ódio tem raízes profundas e é destrutivo a longo prazo. O ciúme é um atrofio crónico numa mente doente e é sempre originado em favor de uma outra pessoa ou objecto, o que é desprezível.
A ira, não. A ira fala na primeira pessoa. Eu encho-me de ira por mim. A ira é egoísta e narcisista. Faz um cordeiro rugir que nem um leão; é uma corda que vibra de modo intenso e irracional e que dissolve no seu reverberar toda a razão e bom-senso.
Sinto-me irada. Tem sido a palavra que me electrifica a mente nos últimos dias: IRA. Pelo que não posso, pelo que não quero, pelo que me obrigam. Por revolta, por desprezo, por rebeldia, por simples insubordinação ridícula e teimosa. Sou isto tudo, abominavelmente caprichosa.
E o pior é que não me envergonho. É outro dos requintes da ira: o sentimento avassalador que tudo justifica e legitima, mesmo que não tenha razão nenhuma.

05/12/2010

Cicatrizes

Jamais conheci quem apreciasse cicatrizes. Próprias ou alheias. Máculas corporais, repelentes, inestéticas, chocantes. A própria palavra tem uma entoação estridente e aquele "-triz" final fica a vibrar no tímpano durante muito tempo.
Eu gosto de cicatrizes. Elas são um mapa, um farol, um documento, mais pessoais e intransmissíveis que uma impressão digital. Todas as cicatrizes têm história, local, uma pessoa, um acontecimento, uma emoção, uma dor e uma regeneração.
Eu tenho uma, resultado de uma queda de mota com o meu pai, na Suíça, quando ainda era suficientemente pequena para ir aninhada à frente dele, entre os dois braços estendidos. Estava imensamente alegre e ria porque ele ia a alta velocidade e subia bermas e atravessava relvados... E depois estava no chão.
Não tenho porque me envergonhar dela: não é muito visível; nem a tento esconder: porque está num sítio já discreto. Mas às vezes contorço-me para poder olhá-la bem e tenho-lhe um respeito grande. Acarinho-a.
Tive um namorado que tinha umas quantas. Uma delas era grande, resultado de uma queimadura com um ferro de engomar, nas costas da mão. Ele escondia-a e fazia sempre um esgar dorido (e lindo!) quando olhava para ela. E eu agarrava-lhe a mão e passava os dedos sobre os contornos daquela marca tão dele, que eu venerava sem que ele conseguisse entender porquê.
Porque as cicatrizes são um apontamento, um sinal físico da nossa passagem por outro tempo, outro local, outras circunstâncias. São como um carimbo num passaporte; uma nódoa de chocolate na nossa bata velhinha da escola; um rasgão naquele peluche adorado da infância; um canto dobrado daquela carta que relemos milhões de vezes; um sublinhado num livro predilecto; uma mossa no carro por temos sido demasiado aventureiros...
Sem cicatrizes ou sinais, seríamos um livro em branco, imaculado e perfeito, mas tão mais insignificantes...!

Para a Fábrica de Letras, mês de Dezembro.